“É certo que aquilo que nos diferencia dos animais é a inteligência e, como tal, agradecia a todos aqueles que humilham e barbarizam a festa brava, compreendam (sic) que aquilo que um toiro sente ao ser-lhe cravado um ferro é dor e não sofrimento. O sofrimento pertence à inteligência emocional, inteligência essa que só a nós, ser (sic) humanos, foi conferida.”
Rute Mourão (R.M.): “Problemas ético-morais das actividades tauromáquicas”, 14/02/2011. Disponível em:<http://www.forumtouradas.com/viewtopic.php?p=4694&sid=6e143ecf084723c988f20e638d6c2f18#p4694>(acesso em 30/09/2016)
Essa frase choca e causa indignação, pela ausência de
compassividade, pela ignorância e arrogância que expressa. Mas ao examiná-la
estoicamente, percebemo-la exemplar perfeito do conceito de especismo, ignominiosa
e degradante discriminação dos animais não-humanos pelos animais humanos. Outra
falácia, o antropocentrismo, pretendeu colocar o bicho homem no topo da
Criação, e portanto, com direitos adquiridos sobre todo o resto do planeta,
fosse pela versão Criacionista, de termos sido criados à imagem e semelhança de
um Deus antropomórfico, de barbas brancas e vingativo, fosse pela teoria da
evolução das espécies, que explica como fomos agraciados com um encéfalo mais
desenvolvido e dotado de uma área executiva, que distingue cognitivamente o homem
do resto dos animais. Mas as consequências nefastas desse domínio já as sabemos.
Nossa inteligência, ao invés de nos salvar, esta a matar-nos, e a todo resto do
planeta, e assim sendo, especismo e antropocentrismo estão a cair de podre.
Segundo o activista Gary Yourofsky, se as abelhas se extinguissem, a Terra
entraria em colapso, o mesmo ocorrendo na hipotética extinção das formigas.
Caso a raça extinta fosse a humana, entretanto, o planeta não apenas
permaneceria mas reencontraria seu equilíbrio. Nada disso nos pertence, muito
menos os animais.
Contradizendo a frase pré-citada, pueril e irracional na
sua premissa, animais não-humanos, são seres sencientes, possuem a capacidade
de ter experiências, de receber e reagir a um estímulo de forma consciente, de
ser afectados positiva ou negativamente. Para que a comentadora possa entender
melhor, imaginemos um aficionado no lugar do touro ou até do cavalo. A mesma
dor e sofrimento que ele sofresse, sofrem touro e cavalo. Nem mais.
Deixando portanto de lado maiores considerações acerca do
texto em si de Rute Mourão, que é lixo, fruto de uma mente que oscila entre a
perversão moral, ética e, temo, psiquiatricamente comprometida, suas ilações paranóicas
é que passam a ter de facto interesse para o debate, pois expõem
escandalosamente um calcanhar de Aquiles que não se pode resistir a espetar (ou
seria “estocar”?)
Trata-se do tal “estudo neuro-endócrino” apenas mencionado,
mas sem os devidos créditos bibliográficos, (simplicidade tauromáquica), que R.M.
descreve como tendo sido realizado em touros, durante a tourada, e que dariam
respaldo cientifico às convicções lunáticas tauricidas, de que o touro, por ser
animal de natureza agressiva e comportamento audacioso, durante uma tourada,
responderia com alterações fisiológicas capazes de elevar seu limiar para a
dor, chegando mesmo a estar, pasmem, completamente anestesiado ao termo da
mesma!
Como médico no exercício da profissão há quase 30 anos,
19 dos quais como cirurgião, ainda consigo surpreender-me, no caso com essa
pretensão de manipular factos científicos, ainda mais de uma maneira tão desastrada,
para tentar maliciosamente converter uma mentira em verdade. Reparem em outros excertos
do original (os grifos são meus):
“Evidentemente que também me
preocupa contradizer as atrocidades que se declaram acerca da dor sentida pelo
toiro. Acredito que seja desconhecido o facto do toiro de lide ter desenvolvido
uma certa resistência à dor mediante o maneio que lhe foi atribuído. Situações
como ferras e tentas, estimulam a libertação de endorfinas (neurotransmissores)
que bloqueiam a passagem do impulso nervoso e “anestesiam” o animal
minimizando-lhe a dor (um pequeno parenteses aqui: anestesia, significa ausência de dor, portanto, ou estaria 'anestesiado' sic, ou teria as dores minimizados. As duas coisas, não pode). O mesmo acontece aquando de uma lide a cavalo ou a pé.
Não só se realizou um estudo para a fisiologia do stress deste animal, como
também se analisou o limite de dor. Quantificou-se (sic) as beta-endorfinas, que são
opiáceos endógenos encarregues de bloquear os receptores da dor no local onde
esta se produz até ao momento que deixa de ser sentida, como já tinha referido
a priori (sic). Através dos resultados obtidos provou-se que o limite da dor dos
toiros é bastante extenso, ou seja, durante a lide, são libertadas grandes
quantidades de beta-endorfinas que ‘anestesiam’ este animal.” R.M.
“É ao observar todas estas
minuciosidades (sic) que eu, aficionada, vibro numa bancada de uma praça de toiros e
não por ver ferros cravados no lombo (sic). Para os entendidos na matéria, o toiro
bravo não sofre, apenas demonstra a sua audácia.” R.M.
“Como futura profissional na área
das ciências veterinárias, sinto-me responsável por salvaguardar esta raça e os
espectáculos taurinos, mas também por assegurar o estatuto ético do animal.” R.M.
“Estimados defensores do término dos
espectáculos taurinos, depreendam que uma ganadaria salvaguarda uma espécie e
que sem lide não existe raça brava.” R.M.
Defende as touradas, que torturam e acabam por matar um
herbívoro incitado a ter o comportamento violento pela mão do homem, “porque, caso contrário, teremos animais de
natureza brava ‘obrigados’ a serem mansos devido à ausência de estímulos”(R.M.).
Ao mesmo tempo, pretende “assegurar o
estatuto ético do animal”, trabalhando em veterinária. Ou a vibrar numa
praça de touros. Tanto faz.
Pois bem, vasculhando na NET, penso ter dissipado as dúvidas
acerca da procedência do estudo mencionado, condição essencial para uma abordagem
legítima e isenta na apreciação de textos científicos. Receio, talvez, ter deitado
água fria às “promissoras” pretensões (pseudo)
cientifico-tauromáquicas de R.M. O resultado que se segue, um artigo* originalmente publicado
em Inglês (e do qual fiz uma livre tradução) pelo médico veterinário José Enrique Zaldivar Laguí, membro do “Ilustre
Colegio de Veterinarios” de Madrid, que faz referência a um estudo similar (na
falta de referencias bibliográficas, é possível acreditar que seja o mesmo estudo
mencionado no artigo de R.M.), questionando a interpretação das
variáveis observadas e das conclusões apresentadas.
Resumidamente (os grifos são
meus), o autor explica que em Fevereiro de 2007, vários conjuntos de
comunicação social deram conta de um estudo neuroendócrino das reacções
hormonais em touros durante as touradas. Este estudo foi realizado por um grupo
de veterinários do Departamento de fisiologia da Faculdade de Ciência
veterinária da Universidade Complutense de Madrid.
O autor salienta que ninguém, nem aficionados nem abolicionistas
questionaram o facto de que o touro é sujeito a sofrimento real, tanto em
termos de dor física como sofrimento psicológico, ainda que o estudo em questão
pareça indicar o oposto.
O artigo inicia pela descrição dos actos praticados contra o touro durante
uma tourada espanhola, e das graves danos de estruturas anatómicas delas
decorrentes, observações fundamentais para embasar os argumentos com que o
autor questiona variáveis e conclusões do estudo em questão.
Na “suerte de varas” – o ‘acto das lanças’, o “picador”, utiliza a ponta de
uma lança, instrumento cuja ponta afiada tem 9 cm de comprimento, à qual é
suposto ferir certos músculos e ligamentos da parte superior do pescoço do
touro. O propósito deste acto é facilitar o trabalho do toureiro, uma vez que, após
sofrer a lesão dessas estruturas, o touro não mais conseguiria erguer sua
cabeça.
Entretanto, não é bem isso que acontece, pois é sabido que 90% das
estocadas são realizadas muito mais posteriormente, onde acrescenta-se o facto
de que as vértebras são bem menos protegidas. Para além disso, em decorrência
de movimentos ilegais do picador, como perfurar e torcer a lança, tal e qual como
um saca-rolhas; ou espetar e sacar a lança varias vezes, decorrendo que, uma
lança tem o mesmo efeito de 7 acutiladas, impedindo a fuga do touro, quando ele
sente dor. Frequentemente, portanto, os ferimentos sofridos são bem mais
graves.
A hemorragia resultante representaria uma perda de sangue de 18 %, quando o
“desejável” seriam 10%. Devido aos movimentos descritos, uma lança pode ocasionar
ferimentos de mais de 20 cm de profundidade, penetrando o corpo em até 5
diferentes direcções.
Numa “Feria de San Isidro”, realizada em Madrid, o autor assistiu à 36
touradas televisionadas, e apenas numa, a lança foi espetada na zona correcta
dos músculos do pescoço – 1 em 36.
No próximo acto, das «banderillas», 6 bastões de madeira com uma
extremidade de 6 cm de aço são espetados na zona dorsal do touro. Seus arpões
de 16 mm de largura, asseguram que não se soltem.
No estudo concernente, foram analisados os níveis hormonais de ACTH,
cortisol e beta-endorfina, além de adrenalina e noradrenalina, em 5 diferentes grupos
de touros envolvidos numa tourada; aqueles apenas transportados da ganadaria à
praça de touradas, outros que foram retirados da arena antes de serem
submetidos e outros ainda que passaram por algum ou todos os actos da tourada.
ACTH e cortisol são hormonas envolvidas numa resposta orgânica ao stress,
mediada pelo sistema nervoso. Quanto
maior sua produção, maior o stress envolvido.
Portanto, seria expectável que o
grupo de touros submetido à todas as acções de uma tourada, tivesse mais ACTH e
cortisol em seu sangue que os outros grupos, pois quanto maior o sofrimento
causado, maior o stress e consequentemente, maior o estimulo à produção dessas
hormonas.
Entretanto, de acordo com o estudo
referido, não é esse o caso. Segundo o mesmo, touros apenas transportados da ganadaria à praça de tourada, e touros
retirados da arena antes de serem molestados, tinham três vezes mais o nível de
stress dos demais, isto é, mais ACTH e mais cortisol. Igualmente, touros do grupo menos ofendido tinham muito
mais stress do que os dos grupos mais ofendidos.
O que pode estar a acontecer, caso este estudo e suas conclusões estejam
correctas, e o autor declara acreditar que estejam, para que tudo seja o oposto do que seria espectável?
Pode ser verdade, como o estudo afirma, que um touro, submetido a uma
tourada, seja um animal neuro-endocrinologicamente perfeitamente adaptado para
tourear?
Nesta altura, o autor salienta, que para
que certas respostas endocrinológicas, como a liberação de cortisol através do
ACTH, possam ser mensuradas, é essencial
para o estímulo neuronal e a condução do sinal que o sistema nervoso esteja
intacto. Ou seja, se um ferimento lesionou o sistema nervoso, este tipo de
resposta hormonal não pode ser assegurado, porque não pode ocorrer de forma
adequada.
A outra parte do estudo está relacionada à produção de outras hormonas chamadas beta-endorfinas, Sabe-se que
estas são produzidas pelo organismo em
situação de stress e/ou dor. Dado que durante a corrida o touro
aparentemente libera uma quantidade enorme de beta-endorfinas, estas seriam
capazes de neutralizar a dor infligida ao touro. É-nos dito que o touro libera
dez vezes a quantidade de beta-endorfinas que humanos. Mas sob que
circunstancias? Nenhum humano foi ou será sujeito a uma corrida. Para assegurar
tais asserções, as espécies comparadas deveriam ser sujeitas as mesmas circunstâncias,
e não é este o caso, e nunca o será.
Aqui o autor salienta que são
atribuídas às beta-endorfinas propriedades que de facto, elas não possuem. Supostamente,
neutralizariam a dor, quando, de facto, o
máximo que se pode dizer é que elas apenas a aliviam. O certo é que elas
actuam como mediadores, e mais
importante, elas medeiam dor e stress.
O autor afirma que nunca teve acesso a um único estudo que sustentasse que
beta-endorfinas neutralizassem a dor, ou que um organismo pudesse instantaneamente
deixar de sentir a dor que lhe esteja sendo infligida, por meio do efeito
daquelas. Além do mais, não estaríamos a
falar de uma dor trivial, aquela que sofre o touro durante uma tourada.
Um extenso numero de estudos em
mulheres durante o trabalho de parto, pela colheita sequencial de amostras
de sangue, demonstraram que quanto mais
elevado o nível de beta-endorfinas, maior a dor experimentada. E um facto
importante, mulheres que frequentaram cursos pré-natais, e que cujos níveis de
stress eram os mais baixos, tinham também os mais baixos níveis de
beta-endorfinas.
Como é possível que níveis de
hormonas relacionadas ao stress, como cortisol, podem estar quase normais em
touros apos as corridas, enquanto outras hormonas, como as beta-endorfinas,
também mediadores do stress, podem estar tão altas? Na opinião do autor, a resposta está na integridade de estruturas nervosas, pois é
sabido que quando há uma lesão
neurológica, beta-endorfinas podem ser liberadas no local da dor, por meio de
certos mecanismos celulares, sem o envolvimento do sistema nervoso.
O autor conclui afirmando que as
respostas hormonais em relação ao stress são aquelas esperadas, tendo em conta
o dano neurológico que o touro sofre durante a tourada, ocasionado pelas acções
praticadas sobre ele e finalmente, pelo esgotamento que o animal sofre
(síndrome de adaptação geral). Esta síndrome tem sido muito estudada ao
longo dos anos e ainda é muito relevante no presente caso. Significa que numa situação
em que haja uma ameaça ao equilíbrio do corpo, todos os organismos respondem
tentando adaptar-se. Pode então ser descrita então como a resposta fisiológica
específica do corpo quando afrontado com uma exigência ou agressão, seja física
ou psicológica. O certo é que quando a
agressão é repetida frequentemente ou tem lugar durante um determinado período
de tempo, e quando os recursos do animal para atingir o nível de adaptação
tornam-se inadequados, aquela passa do estágio de adaptação ao de exaustão, no
qual respostas hormonais ao stress são impossíveis.
A resposta hormonal à dor, isto é, a
liberação de grandes quantidades de beta-endorfinas como é observada no sangue
de touros apos uma tourada, são uma resposta orgânica normal à dor intensa
e stress, e têm muito pouco a ver com a sua capacidade de neutralizar a dor. De
facto, ao contrário, os níveis hormonais
indicam o nível de dor experimentada, não a capacidade do animal de neutralizar
a mesma.
Espero ter desfeito a mistificação e restabelecido a
verdade, lamentando que em Portugal haja sádicos com graves distúrbios de
personalidade e comportamentais, a pretender exercer ou já exercendo funções de
profissionais da saúde, que prestam um juramento pela compassividade e pela
vida, e não pelo sadismo e pela morte. Uma sugestão de pauta à recém- criada AVAT- Associação de Veterinários
Abolicionistas da Tauromaquia, para debater.
Não queremos touro “bravo”, não precisamos de nada bravo,
já temos os aficionados e outros maus de sobra, a andar por aí. Queremos e
precisamos de justiça, da verdade e de Amor, de animais vivos e livres, entre
eles os touros, a viver sua verdadeira natureza de herbívoro manso, sem adjectivos,
sem mentiras, sem exploração, sem sadismo, sem tortura e sem assassinato.
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